A terapia pela palavra está em pleno desenvolvimento no Brasil, na
avaliação de Plinio Luiz Kouznetz Montagna, diretor-presidente da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Nesta entrevista, ele
diz que o maior desafio da psicanálise, hoje, são as fobias, a síndrome
do pânico e outros "transtornos narcísicos"
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O psicanalista Plinio Montagna na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise em São Paulo | | |
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Neste mês de reflexão --já que a entidade celebra 60 anos de filiação à
IPA (International Psychoanalytical Association)--, o psicanalista diz
que esse campo está em plena fase de desenvolvimento. Ele conta como um
método demorado, profundo e caro sobrevive neste mundo imediatista, em
que remédios se colocam como alternativa à conversa terapêutica.
Folha - Como o senhor define a psicanálise hoje?
Plinio Luiz Kouznetz Montagna - Ela atua em vertentes
interligadas: é tratamento clínico; método de pesquisa sobre o ser
humano e teoria do funcionamento da mente que permite generalizações.
Ocorre que pensar a clínica permite pensar a cultura e essa conexão com
artes e filosofia se mantém. É um campo de saber em desenvolvimento, não
está fechada, progride com fluxos e refluxos. Na IPA convivem 12 mil
psicanalistas do mundo, de tendências diferentes.
E muitas divergências, não?
Quando Freud era vivo, era ele quem dizia: isto é e isto não é
psicanálise. Depois que morreu, ficou mais difícil. Enquanto os grandes
mestres do século 20 (Winnicott, Klein, Lacan) estavam vivos, as pessoas
seguiam uma linha. Hoje, a tendência é depurar as contribuições de cada
autor e articular uma conversa entre eles. Não para integrar, pois as
diferenças existem mesmo. Na década de 1980, tantas correntes nos
fizeram questionar o que há de comum na psicanálise. Concordamos sobre
três pontos: nosso objeto é o inconsciente; a importância da
transferência e da contratransferência e a noção de que o passado deve
ficar no passado.
Como isso se traduz no consultório?
O que diferencia a psicanálise de outras psicoterapias é o jogo
transferencial. Para produzir uma mudança, o que adianta é fazer o
problema emergir aqui e agora, na relação com o analista, de modo que
seja possível trabalhar com ele. O analista é como uma tela em que o
paciente projeta imagens. O complicador é que o analista não é uma tela
em branco. Levamos em conta a contratransferência, a relação do
profissional com seu paciente: inclui as dificuldades dele, pontos cegos
que o impedem de escutar. O trabalho não se restringe a ouvir o relato,
o analista escuta inconsciente.
O método nasceu como uma cura pela fala. Essa conversa pode ficar muito racional?
A racionalização não é análise e sim a tentativa de evitá-la. Essa
defesa pode surgir tanto do paciente quanto do analista, porque o
contato emocional gera turbulência. As resistências fazem parte, porém, o
cerne da psicanálise é o encontro, e ele só ocorre quando se vai além
das defesas. Por isso temos de saber manejá-las.
E quanto ao passado? Muita gente acha que psicanálise é ficar falando de traumas da infância.
Psicanálise não é "falar sobre". A transferência é uma espécie de
atualização do passado com o objetivo de permitir que o presente se
instale. A análise permite que o passado fique no passado e a pessoa
viva no presente. Essa é a libertação.
Aqui no Brasil, a psicanálise avança ou recua?
Nos anos 50 e 60 houve implantação e expansão, depois teve um momento em
que as terapias corporais e o psicodrama estavam em destaque. Por um
período, os analistas se recolheram nos consultórios. A clínica continua
sendo fundamental, mas hoje vivemos um florescimento para além dela, um
momento de grande inserção social. Na Sociedade, há grupos ocupados com
atendimento à comunidade, psicanalistas que dão suporte a uma ONG que
trabalha com meninos de rua, sem falar na atuação em hospitais. Os
analistas também atuam cada vez mais no setor jurídico, trabalhando como
mediadores e peritos em questões de família, divórcio, guarda de
filhos. E podem contribuir muito graças à visão global que têm de
situações complexas como interdição, brigas, drogadição, violência
doméstica etc.
Como a técnica responde às patologias contemporâneas?
Esse é o grande desafio atual: lidar com fobias, pânico, transtorno
bipolar, borderline, os chamados estados narcísicos. Todas essas
patologias têm em comum o fato de serem estruturas arcaicas [criadas no
início da vida, antes da linguagem e do amadurecimento da psique], ou
seja: se instalam antes do mecanismo de repressão. Na neurose, a
repressão já está instalada, existem os conflitos psíquicos e, nessa
etapa, é possível simbolizar o sofrimento. No caso do pânico, por
exemplo, não existe nem esse conflito. Imagine o medo tentando entrar na
mente. Sem a parede da censura para barrá-lo, ele a invade. E, como na
estrutura arcaica não há possibilidade de simbolização, o que costuma
ocorrer são dores e outras manifestações corporais. Os psicanalistas
hoje se debruçam sobre esses fenômenos. A Sociedade tem equipes de
estudos de fibromialgia, dores crônicas, psicossomática. Há membros da
Sociedade pesquisando conexões entre dor física e psíquica.
O senhor é psicanalista e psiquiatra, e há um embate entre essas
áreas. O que acha da oferta de remédios que prometem alívio rápido?
O avanço da psicofarmacologia permitiu medicações mais eficientes e com
menos efeitos colaterais. Por outro lado, é avassaladora a quantidade de
dinheiro investido na indústria de remédios, não só no desenvolvimento
científico, e sim na propaganda. A promessa de ªfelicidade químicaº
surgiu na década de 80, com o Prozac. Foi questão de tempo para todos
descobrirem que não existe pílula de felicidade. Aliás, a psicanálise
também não traz felicidade. Nem promete. A psiquiatria clássica perdeu o
contato com o ser humano, tenta encaixá-lo numa lista de sintomas
pré-estabelecidos. O resultado é que muitos psiquiatras diagnosticam a
tristeza como depressão. Isso é um desvio, não é o caso de se
medicalizar tudo.
É possível medir os resultados de uma análise?
A psicanálise promove transformações significativas. Existe um grupo em
Boston que está pesquisando mudanças psíquicas. Esse grupo estudou
pessoas que consideravam que suas análises tinham sido bem-sucedidas.
Elas destacaram a vivência de uma comunicação profunda com seus
analistas e "insights" que alteraram a percepção de si e das situações.
Comparo os "insights" da análise ao sistema olfativo: sentir um aroma
novo não significa só adicioná-lo ao repertório conhecido, e sim alterar
o circuito de tal modo que, a partir daí, o próximo odor será recebido
de forma diferente, porque toda a estrutura do arquivo foi modificada.
Por que a profissão não é reconhecida pelo Ministério da Educação?
Na década de 50, foi oferecido à SBPSP (*) a possibilidade de se oficializar
a profissão e a formação, mas esse caminho não foi adotado. Na minha
opinião, por um erro de cálculo, mas nem todos concordam comigo. Muitos
acham que não é o Estado que tem que reconhecer nossa profissão, e sim
as próprias instituições psicanalíticas.
Fonte: Folha de São Paulo, caderno Equilíbrio e Saúde
DÉBORAH DE PAULA SOUZA é jornalista com formação em psicanálise